É cada vez mais difícil encontrar um profissional autônomo que defina o que faz em uma só palavra. Há os que se dividem em atividades do mesmo campo de atuação (coach-consultor-palestrante), enquanto outros atuam simultaneamente em diferentes áreas (tradutora/designer/instrutora de ioga).
Esse trabalho multifacetado é conhecido como portfolio career (“carreira de portfólio”) – configuração que, por opção ou necessidade, tende a se tornar cada vez mais comum em um mercado em rápida transformação. Trata-se de uma estratégia para exercer múltiplos talentos e, ao mesmo tempo, ampliar o leque de possíveis fontes de renda.
A carreira de portfólio pode ser gratificante ao proporcionar mais espaço para aprendizados, hobbies, relacionamentos pessoais e cuidados com a saúde, mas envolve também algumas dificuldades típicas – especialmente aquelas relacionadas à remuneração.
Mesmo exercendo diversas atividades, dificilmente se consegue alcançar, ao menos nos primeiros tempos como autônomo, patamar de renda semelhante ao do mundo corporativo. Uma das razões é que se investe muito tempo em prospecções, reuniões e apresentações que não necessariamente serão transformadas em horas remuneradas.
“Certamente não é fácil abrir mão da segurança proporcionada por um salário fixo e mais uma série de benefícios”, diz Maristela Ianuzzi, 47 anos, que passou exatamente por essa transição neste ano.
Ela trabalhou durante dez anos na Schneider Electric, e nesse período ajudou a transformar a empresa em referência nacional em inclusão e diversidade. Em reconhecimento ao trabalho, tornou-se diretora global da área.
Até que, no início deste ano, a matriz determinou que todos os diretores globais deveriam estar em um dos três multihubs da companhia – Paris, Boston ou Hong Kong.
Ao colocar na balança as circunstâncias familiares e a perspectiva de que continuaria fazendo exatamente a mesma coisa que já fazia no Brasil – só que distante de tudo e de todos –, Maristela decidiu que abriria mão da possibilidade de trabalhar e morar no exterior.
Foram seis meses de transição dentro da empresa, período em que a executiva se preparou para iniciar uma experiência inédita como profissional autônoma.
“Eu já vinha sentindo essa vontade e amadurecendo a decisão, mas as circunstâncias foram o empurrão que eu precisava para agir de vez”, descreve. “Não anunciei que iria sair da Schneider porque não queria ‘correr o risco’ de receber um bom convite e acabar desistindo do meu projeto pessoal.”
Em agosto, depois de 25 anos consecutivos como funcionária de carteira assinada, Maristela iniciou uma típica carreira de portfólio. Além de se apresentar como consultora e palestrante nas áreas em que vinha atuando – inclusão e diversidade, transformação digital e experiência do consumidor –, ela fez um curso de conselheira no IBGC (Instituto Brasileiro de Gestão Corporativa) e foi convidada para se tornar representante no Brasil da ONU Mulher, resultado da sólida rede de contatos estabelecida durante o trabalho na Schneider Eletric.
A consultora Ilana Berenholc, especialista em personal branding, diz que todo profissional precisa estar preparado para uma eventual carreira autônoma, seja por escolha ou pelas circunstâncias.
“Aquele modelo de carreira que permitia planejamento de longo prazo deixou de existir. Hoje é tudo muito volátil e ninguém sabe ao certo como será o dia de amanhã”, ela alerta.
Por isso é importante dedicar-se constantemente à gestão da marca pessoal, independentemente do momento profissional que se está vivendo – dentro ou fora de uma empresa. Isso exige cuidado especial com as relações.
Também é fundamental, lembra a consultora, estar sempre em busca de novas habilidades para incrementar o portfólio. “Estamos na era do lifelong learning, o aprendizado constante ao longo de toda a vida”, diz Ilana. “Mas há ainda um tipo de profissional que se acha tão bom na área em que atua que não abre a possibilidade para desenvolver novos caminhos. Esse tipo é o que costuma levar os tombos mais feios”, alerta a consultora.
A pesquisa Decoding Global Talent, divulgada pelo Boston Consulting Group em parceria com a consultoria de recrutamento online The Network, identificou justamente essa tendência ao redor do mundo: quanto mais instruído e experiente é um profissional, menor é sua abertura para se preparar para novos papeis.
Esses profissionais preferem ser reconhecidos como especialistas no que fazem e resistem à ideia de ter um plano B. Deixam, assim, de adquirir um perfil mais multifacetado, que tende a ser melhor absorvido pelo mercado do futuro.
Os pesquisadores credenciam tal visão à resistência natural por conta do tempo já investido na obtenção das habilidades atuais e no receio de que ser “calouro” em outra atividade possa representar perda de prestígio.
A pesquisa mostrou também que, se as incertezas sobre o futuro são uma preocupação para qualquer profissional do planeta, ninguém está perdendo mais o sono por conta disso do que os brasileiros.
Entre os 90 países incluídos na pesquisa, que ouviu 366 mil trabalhadores, o Brasil alcançou os maiores índices de preocupação com as transformações provocadas no mercado de trabalho pelas chamadas “megatendências globais”: as mudanças tecnológicas e a globalização.
Três em cada quatro profissionais brasileiros ouvidos concordaram com a afirmação de que seus empregos serão fortemente afetados por uma dessas tendências, ou por ambas.
Em relação especificamente ao impacto das mudanças tecnológicas, o índice entre os brasileiros foi de 65%, contra a média mundial de 49%. No que diz respeito à globalização, a proporção de respostas positivas à afirmação chegou a 69% entre os brasileiros, enquanto ficou em 45% na média global.
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